Uma crônica envolvente sobre memórias, ancestralidade e transformação, entrelaçando passado e presente em busca de equilíbrio e conexão profunda.
O ar estava pesado naquela tarde, um calor úmido que grudava a camisa nas costas e fazia o vento parecer um sopro quente vindo de um forno invisível. Eu tinha uns seis anos, talvez sete, e corria descalço pelo quintal de terra batida, chutando uma bola improvisada de meia enquanto o som abafado de um rádio ecoava da cozinha. Era um daqueles dias em que o tempo parecia se arrastar, mas algo na voz rouca que vinha de dentro da casa me puxou como um ímã. Ele estava lá, o velho de pele curtida e olhos fundos, sentado numa cadeira de palha que rangia a cada movimento. Eu o chamava de vô, porque era assim que me ensinaram, mas seus gestos lentos e suas histórias desconexas sempre me deixaram com um nó na cabeça. Anos depois, já com o peso de quase meio século nas costas, eu descobriria que ele não era meu avô, mas um tio distante, um hóspede temporário que carregava nos ombros uma doença que ninguém nomeava na frente das crianças.
Cresci ouvindo meu pai contar, quase como quem recita um poema, que o pai dele o meu vô, numa noite de luar, colocou a mão na barriga da minha mãe e disse, com um sorriso torto: “Aqui tem um palmeirense”. Eu ri quando ouvi isso pela primeira vez, porque, nos meus primeiros anos, tudo que ganhava do meu pai vinha com o escudo do Corinthians – meias, camisetas, até um chaveiro amassado que ele jurava ter valor. Mas antes dos oito, num surto de teimosia que só uma criança pode ter, plantei o pé no chão e declarei: “Sou Palmeirense”. Ele só deu uma risada seca e disse: “Eu já sabia”. Hoje penso que talvez meu vô tenha visto algo em mim antes mesmo de eu nascer – um traço de rebeldia, uma faísca que não explica, mas guia.
O quintal daquela casa era mais que um playground; era um palco de memórias que eu só entenderia muito depois. Do lado da minha mãe, os avós que eu abraçava com tanto carinho não eram de sangue, mas de coração. Meu avô materno partiu quando eu era pequeno demais pra lembrar, e minha avó, dizem, se foi no parto dela, deixando traços que hoje sinto pulsar em mim – uma energia indígena, um sussurro ancestral que me chama em sonhos e silêncios. Já a mãe do meu pai, vó Carmem, era um furacão de cabelos grisalhos e sotaque espanhol. Ela dançava entre dias de lucidez e tempestades que os adultos chamavam de “doença mental”. Eu não entendia. Pra mim, ela era só vó – exigente, às vezes brava, mas sempre com uma história na ponta da língua. Repetia as mesmas lembranças, de um interior duro onde o amor se misturava à luta, mas em cada repetição algo novo brotava, como um rio que muda o curso sem avisar.
Eu me vejo menino, sentado aos pés dela, enquanto o sol se punha e pintava o céu de laranja. Ela falava de um tempo em que as máquinas eram raras e as mãos calejadas contavam mais que dinheiro. Falava de um marido que enfrentava o mundo com pouco além de coragem, de filhos que cresceram entre a poeira e a esperança. Eu ouvia, mesmo quando os adultos cochichavam que ela “não estava bem”. E teve aquele dia – eu devia ter uns onze anos – em que um primo mais velho, com a arrogância de quem acha que sabe tudo, cuspiu um “sua vó é louca” que me fez ferver. O sangue subiu, o dragão que carrego desde 1976 acordou, e saímos no soco. “Minha vó não é louca, é doida! O louco sou eu, neto dela!”, gritei, enquanto a poeira subia e os gritos ecoavam. Não sei quem venceu, mas sei que defendi algo maior que eu.
Os anos passaram como páginas de um livro que você lê sem perceber. A vó Carmem se foi numa data que não fixei, mas eu já era grande o suficiente pra sentir o vazio. Minha mãe, de olhar que enxergava além, também partiu há uns dois anos, deixando um silêncio que ainda não sei preencher. E eu, que nasci num 14 de julho sob o signo do caranguejo e a força do dragão, comecei a cavar nas raízes dessas histórias. Não é só saudade; é um chamado. Percebi que as memórias que carrego – as brigas, os risos, as crises, os silêncios – são mais que pedaços de um passado confuso. São fios de uma tapeçaria que me liga a eles e a mim mesmo.
Penso nas minhas filhas, que dançam entre os genes e as energias que herdei deles e da mãe delas. Quero que cresçam sem os nós que eu demorei tanto a desatar. Que saibam de onde vêm – da luta de um casal no interior, da teimosia de um velho que viu um palmeirense num ventre, da força de uma mulher que enfrentou sombras na mente e ainda assim me ensinou a ouvir. Hoje, busco essas conexões como quem acende velas num altar invisível. Uso o que aprendi com os livros, com os mestres que falam de liderança e mente, com os sussurros de povos antigos e os códigos de um mundo digital que não para de girar. Quebro os padrões que me prenderam, não por mim, mas por elas – pra que carreguem essa chama com leveza, não com peso.
Às vezes, fecho os olhos e vejo a vó Carmem contando suas histórias, o rádio chiando um sucesso dos anos 90, o velho no quintal com seu olhar perdido. Vejo minha mãe rindo de mim, pequeno, tentando explicar por que o verde do Palmeiras me escolheu. E sinto que não é tarde. É só o começo de entender que o que chamam de loucura pode ser só um jeito diferente de enxergar o mundo – um jeito que me deu asas pra voar além do que me contaram.
Reflexão sobre a Crônica
Eu, Alessandro Turci, escrevo estas linhas pra você, que acompanha o SHD: Seja Hoje Diferente, porque acredito que cada pedaço da nossa história tem algo a nos ensinar – e a nos transformar. Esta crônica que você acabou de ler não é só um mergulho nas minhas memórias; é um espelho pra que você olhe pras suas. Ela fala de quem eu sou, mas, mais que isso, fala de quem eu escolhi ser – e de como o passado, com suas dores e suas luzes, me trouxe até aqui. Pra mim, a grande lição disso tudo é que conhecer a si mesmo não é um presente que a vida entrega pronto; é uma conquista, um passo que damos todo dia, com coragem pra olhar pra trás e força pra construir o que vem pela frente.
Quando eu era aquele menino correndo no quintal, chamando de avô um homem que depois descobri ser um tio distante, eu não sabia da verdade – mas sentia o calor daquele laço. Anos mais tarde, entender que ele não era meu avô de sangue não apagou o que vivi com ele. Isso me mostrou que as conexões que formamos, mesmo as que não explicamos direito, moldam quem somos. E tem aquele momento, antes dos oito anos, em que eu bati o pé e disse ao meu pai: “Sou palmeirense”. Ele riu, já sabia, mas pra mim foi mais que escolher um time – foi o dia em que comecei a dizer pro mundo quem eu era, mesmo que ainda fosse só um sussurro.
Eu falo muito no SHD: Seja Hoje Diferente, na minha vida pessoal e profissional, sobre desenvolvimento e autoconhecimento, mas sempre deixo claro: eu falo enquanto aprendo. Trago isso nos textos, nas palavras, porque, sabe, como eu poderia querer ensinar alguém sobre autoconhecimento, dar aulas ou me colocar como mentor se eu ainda não desvenduei nem 10% de quem sou? De onde vim, das minhas raízes, dos fios que me tecem? Como posso guiar outros pra se conhecerem se eu ainda estou tateando o meu próprio caminho? E olha, eu vejo isso demais por aí: gente que jura que se conhece, que quer ensinar os outros a se encontrarem, mas nem sabe quem é, de onde veio ou o que os prende. Isso vai além – envolve energias, carmas, conexões espirituais. Tem quem não dá valor a um familiar vivo, imagina depois de morto. Falar é fácil, escrever também, ainda mais hoje em dia, com tudo na palma da mão. Mas atitudes? E aquele vazio que aperta o peito à noite, sussurrando que falta algo? Isso, sim, pesa – e é isso que me move a buscar mais. Mas e você? O que realmente te define — aquilo que está no silêncio do coração ou o personagem que construiu pra agradar o mundo?
Quantas vezes, leitor do SHD, você já deixou de gritar o que te define por medo do que vão pensar?
Alessandro Turci
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