Reprodução foto ilustrativa internet
Um Ford Del Rey marrom some em 1997, levando saudades e lições de um príncipe rebelde e seu pai. Uma crônica rica em alma, perda e transformação.
Era uma manhã úmida, dessas em que o cheiro de terra molhada se mistura ao óleo queimado que paira na garagem. O Ford Del Rey 1987 estava lá, imponente, sua pintura marrom reluzindo como madeira polida sob a luz tímida que escapava das nuvens. Eu passava os dedos naquele metal frio, sentindo o peso de algo que não sabia nomear. Tinha quase 21 anos, mas ali, diante dele, eu era um príncipe – ou pelo menos me sentia um. Meu Fiat Spazio, que eu tanto gostava, ficava esquecido quando o Del Rey me chamava. Era como se aquele carro tivesse uma alma, um rugido grave que me fazia esquecer o mundo.
Meu pai o comprara no início dos anos 90, numa época em que o som das guitarras ainda ecoava das fitas cassete e eu começava a entender que nem tudo na vida vinha com manual. Ele nasceu em 1947, um canceriano do ano do porco, dizem os signos chineses – teimoso, mas com um coração que guardava mais do que mostrava. O Del Rey era seu orgulho, mesmo com os percalços. Uma vez, ele ferveu como um caldeirão esquecido no fogo, cuspindo vapor quente que marcou as mãos dele com vermelho. Outra vez, distraído, bateu a traseira num carro qualquer, e eu vi o ranger de dentes enquanto ele avaliava o estrago. Teve também o dia em que a lateral da frente encontrou um carro parado – um erro que ele consertou com o mesmo silêncio obstinado de sempre.
Mas eu não era santo. Muitas vezes, peguei o Del Rey sem avisar, escapando pela garagem como um ladrão de mim mesmo. Eu, a ovelha negra da família – ou será que ainda sou? –, sentia o volante como uma coroa, o ronco do motor como um hino. Dirigia pelas ruas tortas do bairro, o vento batendo no rosto, o rádio tocando algo dos anos 90 – talvez Paralamas ou Nirvana. Era liberdade com um toque de culpa, mas eu não resistia. Uma noite, saí com ele lindão, o marrom brilhando sob os postes, e voltei com um buraco na porta do passageiro. O corte era tão perfeito que parecia obra da Excalibur, a espada lendária rasgando o metal. Meu pai olhou, respirou fundo, e disse apenas: “Vamos trocar a folha”. Não gritou. Acho que ele sabia que eu já carregava o peso.
Em 1997, o Del Rey estava no auge. Meu pai tinha feito o motor, e o bicho ronronava como um rei em seu trono. Planejávamos trocar a placa amarela pela cinza, um rito que parecia prometer um recomeço. Eu imaginava ele cortando as avenidas, eu ao volante, o príncipe rebelde domando seu corcel. Mas, três dias antes, numa noite quieta demais, ele sumiu. A garagem amanheceu vazia, e meu peito se apertou como se alguém tivesse roubado um pedaço de mim. Meu pai ficou calado, os olhos fixos no nada, talvez aceitando o que eu não conseguia. “Foi encomenda”, ele murmurou, e eu sabia que sim. Aquele marrom reluzente, aquele ronco – era um troféu pra alguém. Até hoje, penso nele rodando por aí, em mãos que nunca saberemos.
A perda me cortou mais fundo que a ele, acho. Meu pai, com seus 50 anos bem vividos, já conhecia o desapego. Eu, nascido na noite de 14 de julho de 1976, canceriano do ano do dragão, ainda aprendia a soltar. Quase vim no dia dele, 13 de julho, mas o destino me atrasou – um eco de desafios que meus pais nunca contaram. Sou feito de água e fogo, de saudades que não explico. O Del Rey era mais que um carro: era um espelho onde eu via meu pai, consertando o que quebrava, e eu, quebrando o que ele consertava. Nele, eu sentia o pulsar de algo maior – um ronco que falava de raízes, de estradas, de quem eu queria ser.
Fecho os olhos e estou lá: o estofado range, o rádio chia uma música antiga, e o Del Rey corta a noite. Penso nas vezes que meu pai me emprestou, nas broncas que não vieram, no silêncio que dizia mais que palavras. Penso no buraco na porta, na Excalibur imaginária, e me pergunto: o que fica quando algo se vai? Não é o metal, é o que ele carregava – pedaços de nós, de um tempo que não volta. Meu Fiat Spazio era meu, mas o Del Rey era nosso. Perder ele foi como perder um reino que eu nunca soube que tinha.
A vida é isso, talvez: um eterno consertar e perder. Meu pai sabia, com suas mãos marcadas e sua calma de porco teimoso. Eu, com meu fogo de dragão, ainda aprendo. Dizem que o que brilha demais atrai os olhos errados, como um feitiço antigo. Outros falam em ciclos, em portas que se fecham pra abrir janelas. Eu vejo um garoto e seu pai, uma garagem vazia, e um vazio que se enche de lembranças – um ronco distante, um marrom que ainda vive em mim.
Eu, Alessandro Turci, deixo aqui este pedaço de mim. Olhar pra dentro é como consertar um carro riscado: dói, mas devolve a alma. Que a gente cresça, nas curvas da vida, nas garagens cheias ou vazias, em tudo que nos faz humanos. Que você encontre sucesso, saúde, proteção e paz na sua própria história, como um rei que, mesmo perdido, ainda reina na memória.
O que nos marca não se apaga – apenas troca de estrada.
Um forte abraço!
Alessandro Turci