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Uma crônica envolvente sobre infância, imaginação e autoconhecimento, entre monstros de panetone e quedas que ensinam mais que pontos na testa.

Uma crônica envolvente sobre infância, imaginação e autoconhecimento, entre monstros de panetone e quedas que ensinam mais que pontos na testa.

Era uma tarde pegajosa de dezembro, o Natal já tinha escorregado como um eco distante, deixando no ar o cheiro de pinheiro falso, papel amassado e um restinho de gordura de peru que ninguém quis repetir. Eu, com o calor da Zona Leste de São Paulo colando a camiseta na pele, peguei uma caixa de panetone – dessas que sobrevivem às festas por pura teimosia – e decidi que ela merecia mais que o mofo da despensa. Com uma tesoura cega, abri dois buracos tortos para os olhos, rasguei um espaço desleixado pra boca, e ali nasceu minha máscara. Não era só papelão com farelo de frutas cristalizadas; era um véu, uma nave, um pedaço de outro mundo. Coloquei-a na cabeça e, num piscar, deixei de ser eu. Virei Spectreman, o herói de lata que eu via na TV em preto e branco, lutando contra monstros saídos de um Japão longínquo e da minha cabeça ainda mais selvagem.

Subi na laje com o peito estufado, o vento quente carregando o cheiro de asfalto quente e fumaça que subia das ruas tortas. Lá embaixo, o quintal era um planeta em ruínas – latas amassadas brilhavam como meteoros caídos, sacos plásticos dançavam como fantasmas ao som de um rádio rouco que gemia Roberto Carlos ao longe, e o latido seco de um cachorro cortava o silêncio. Meus monstros estavam ali, feitos de poeira e restos, filhos da poluição que eu jurava combater. “Spectreman!”, gritei, a voz abafada pela máscara, e pulei. Um salto de quem acha que o ar é amigo, que o chão entende os sonhos. Mas o concreto me pegou de surpresa, um tapa seco que fez minha testa beijar o chão antes que eu pudesse gritar de novo. O barulho foi um estrondo abafado, a máscara voou em pedaços, e eu fiquei ali, o mundo girando como um carrossel quebrado, a dor pulsando como um tambor rouco.

Minha mãe surgiu na porta, o avental sujo de óleo, a voz tremendo num “Menino, o que foi isso?” que parecia mais um soluço. Meu pai não estava – ele trabalhava no Mercado Municipal de São Paulo, numa banca de miudezas, cortando fígado e coração enquanto o cheiro de sangue e tempero grudava nas mãos. Foram os vizinhos que me ergueram, mãos ásperas me carregando até um fusca que tossia fumaça pela rua. No hospital, ganhei três pontos na testa – uma constelação torta de linha preta – e uma dor de cabeça que trovejava dentro do crânio. Minha mãe segurava minha mão com dedos que tremiam, como se quisesse me costurar ela mesma, e o médico ria baixo enquanto passava a agulha. Entre o cheiro de álcool e o latejar, algo se mexia em mim. Não era só o galo ou a vergonha de virar lenda na rua. Era um sussurro quieto, uma faísca dizendo: “Você caiu, mas ainda respira.”

Eu era um filho dos anos 80, nascido em 76, num tempo de fitas cassete emboladas, gibis da Mônica e promessas de um futuro com luzes piscando. O rádio cantava Menudo e Titãs, a TV cuspia propagandas de brinquedos que eu sonhava, mas na laje eu não precisava de nada disso. Meus monstros eram mais vivos que os da tela, minha máscara valia mais que qualquer nave de loja. Aquela queda, por mais desengonçada que fosse, era minha primeira aula sem mestre – um jeito bruto de aprender que o chão fala, que o tombo desenha, que a gente cresce nas frestas. Não tinha filosofia de banca nem guru pra me guiar, mas o corpo entendia, o coração captava.

Anos depois, já nos 90, eu via um filme sci-fi na TV de tubo, a tela tremendo com linhas tortas. Um herói enfrentava um reflexo sombrio, e eu, com um copo de Fanta na mão, senti um arrepio. Não era só o filme – era eu me perguntando, sem voz, quem eram meus monstros de verdade. A cicatriz na testa já era um fio quase invisível, mas o cheiro de panetone ou o som de um rádio mal sintonizado me levavam de volta à laje. Eu pensava naquele garoto que pulava sem medo, que fazia do trivial um épico, que caía e levantava com um riso torto no canto da boca.

Nos anos 2000, já adulto, eu estava num ônibus lotado, o celular tocando um ringtone que eu nunca trocava. Olhei pela janela embaçada – o cheiro de chuva misturado ao vidro frio, um outdoor piscando “Compre já!” em neon falhado. A cidade engolia o tempo, prédios subiam como torres sem fim, o trânsito rastejava. Sufocado entre pastas e prazos, senti um vazio. Então veio ele, o menino da máscara, surgindo quieto na memória. Eu o vi na laje, os olhos brilhando por trás do papelão, o salto sem hesitação. Ele não tinha medo do chão, acreditava no voo. E ali, entre o terno suado de um estranho e o vidro molhado, entendi que ele não tinha morrido. Estava em mim, me cutucando pra voar de outros jeitos – com palavras, com silêncios, com as ideias que dançam quando o mundo cala.

Os pontos na testa viraram estrelas tortas, um mapa que carrego sem alarde. Não sou Spectreman, nunca fui herói de tokusatsu. Sou só alguém que caiu de uma laje, que riu da própria cara no chão, que ouviu a mãe soluçar e os vizinhos cochicharem, e que, mesmo assim, continuou recortando o mundo pra enxergar além. A vida é isso: um eterno remendo de caixas velhas, um construir de máscaras com o que sobra. Os monstros mudam – viram dúvidas, prazos, silêncios que pesam –, mas eu aprendi a enfrentá-los, não com gritos de herói, mas com um olhar mais fundo, mais quieto, mais meu.

Hoje, vejo o céu da Zona Leste ao entardecer, um roxo que engole o cinza, e penso naquele salto. Eu, Alessandro Turci, deixo aqui este pedaço de mim – um canceriano do ano do dragão, que pulou de um quintal e caiu num universo maior que São Paulo. Crescer é costurar os tombos, é pular sabendo da queda, é fazer de um panetone uma história. Que você, leitor, encontre suas cicatrizes-estrelas, seus voos tortos, seus próprios mundos. Que você encontre sucesso, saúde, proteção e paz na sua própria história. E que o som do seu salto – um grito ou um suspiro – ressoe como um trovão suave: “Eu caí, eu voei, eu sou.”

Um forte abraço!

Alessandro Turci

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